O estranho caso de Angélica

O Estranho Caso De Angélica (2010)

Influências da literatura, pintura, fotografia e cinema num dos últimos e mais significativos filmes de Manoel de Oliveira.

"O Estranho Caso de Angélica" é um filme de 2010 realizado pelo diretor português Manoel de Oliveira. Coproduzido por Portugal, França, Espanha e Brasil, é estrelado por Ricardo Trêpa como Isaac, Pilar López de Ayala como Angélica, Leonor Silveira como a mãe de Angélica, Luís Miguel Cintra como o Engenheiro, Isabel Ruth como a empregada da família de Angélica e Susana Sá, como Dona Rosa.
O filme é ambientado em Portugal durante a década de 1950 e conta a história de um jovem fotógrafo chamado Isaac, um judeu sefardita, inquilino da modesta pensão de Dona Rosa, em Peso da Régua. Durante uma noite de tempestade, uma ligação urgente desperta o fotógrafo com o pedido de obter um retrato post-mortem de uma jovem cuja morte ocorreu logo após a celebração de seu casamento.
No momento de focar e disparar sua câmera na figura frágil e angelical de Angélica, ainda vestida de noiva, Isaac se surpreende ao ver que a jovem abre os olhos e sorri. A partir desse momento, Isaac não conseguirá esquecer aquele sorriso, enquanto o espírito de Angélica parece apossar-se gradualmente da alma do fotógrafo.
Em uma das cenas mais importantes, Angélica está deitada, vestida de branco, sobre uma otomana azul claro, no meio de uma sala banhada por uma lâmpada branca. Isaac procura o melhor ângulo para tirar a foto com uma Leica fabricada antes da Segunda Guerra Mundial, cujo foco é obtido através de um visor onde a imagem se desdobra e sobrepõe até chegar a uma única imagem. As duas imagens se separam quando o objeto fica fora de foco e coincidem quando a imagem do objeto está em foco.
Embora a Leica seja uma câmera de meados do século 20, Oliveira faz muitas referências a formas anteriores de fotografar. Como podemos ver na casa da família de Angélica, tudo se encontra em seu devido lugar, como numa encenação teatral. Até as flores foram colocadas delicadamente no divã. Nenhum detalhe foi esquecido.
Da mesma forma que as fotografias eram feitas no início, em meados do século XIX, com as pessoas a serem retratadas dispostas em poses específicas e em locais previamente determinados. “Foi a época em que surgiram aqueles ateliês com suas cortinas e palmeiras, tapeçarias e cavaletes, mistura ambígua de execução e representação, câmara de tortura e sala do trono” (BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”, p.98)

Naquela época não era incomum tirar fotos de parentes falecidos com o intuito de guardá-las como um último retrato no álbum de família. É isso que André Bazin, em seu texto “¿Qué es el cine?” (Ed. Rialp, 2008) chama de “complexo de múmia”, uma forma muito antiga de escapar da inevitável passagem do tempo e, portanto, da própria finitude: “la muerte no es más que la victoria del tiempo. Y fijar artificialmente las apariencias carnales de un ser supone sacarlo de la corriente del tiempo y arrimarlo a la orilla de la vida” (BAZIN, André, ¿Qué es el cine? p.23).
Essa necessidade de prolongar a vida de entes queridos falecidos por meio de uma fotografia é, em certa medida, o que W. Benjamin chama de “fenômeno aurático”: “Em muitas imagens de grupo, os personagens ainda têm uma forma alada de 'vamos estar junto', assim como ela aparece temporariamente no prato, antes de desaparecer no 'clichê original'”. (BENJAMIN, Walter. “Pequena história da fotografia”, p.99)
Mesmo se procurarmos a palavra "aura" no dicionário, aparece a seguinte definição: "de acordo com as crenças espirituais e no campo da parapsicologia, uma aura ou campo de energia humana é uma emanação de cor que se diz envolver ou envolver o corpo humano, assim como qualquer animal ou objeto”. (Aura -parapsicologia- na Wikipedia: https://es.wikipedia.org/wiki/Aura_(parapsicolog%C3%ADa).
Em outras palavras, poderíamos dizer que a imagem fantasmática que Isaac capta de Angélica não vem apenas de seu corpo físico reclinado, mas também de um corpo vivo, mais sutil que o anterior e que acabará por se tornar uma forma de libertação, em paralelo ao que acontece com o pássaro engaiolado na pensão de Dona Rosa.
A região do rio Douro é famosa por ser uma das regiões vinícolas mais antigas e importantes de Portugal. Atualmente, são utilizadas escavadoras mecânicas para fazer o trabalho de plantação da vinha, mas antigamente tudo isto era feito manualmente. Num acesso de melancolia, Oliveira insere uma cena em que o fotógrafo Isaac fotografa um grupo de garimpeiros trabalhando a terra durante um pôr do sol. Voltando ao quarto, pendura as impressões fotográficas em uma corda, onde as deixa secar durante a noite.

Esta corda com várias impressões fotográficas penduradas aparece-nos como uma montagem cinematográfica, em que cada fotografia dos garimpeiros se constitui num fotograma. A sequência resulta em várias faces da vida cada vez menos iluminadas, devido à crescente falta de luz solar durante o crepúsculo, simbolizando o processo de envelhecimento que leva à morte.
Após essa montagem cruel de rostos sinistros e sombrios, há três fotos de Angélica, uma de corpo inteiro, outra de meio corpo, e a última é um close up do rosto dela. Pensa-se imediatamente na escala dos planos cinematográficos, até o instante que os olhos de Angélica se abrem e seus lábios deixam ver os seus dentes brancos em um amplo sorriso.
Onde antes havia uma justaposição de enquadramentos, agora a tela do cinema é desvelada dentro de um quadro fotográfico, numa brilhante metáfora do salto tecnológico da fotografia para o cinema.
O tema central do filme é a morte, mas em sua relação com a beleza e o amor. Oliveira reflete sobre a arte cinematográfica nas suas origens, sobre a sua relação com a fotografia e sobre a possibilidade destas duas artes imagéticas conservarem o poder de criar beleza, mantendo a aura do objeto fotografado e da imagem captada.

Influências de outros gêneros artísticos em “Angélica…”
"O estranho caso de Angélica" recebeu influências de diferentes estilos literários, pictóricos e cinematográficos que merecem destaque.
Da literatura, inspirou-se em quatro escritores portugueses nascidos na região do rio Douro: Antero de Quental, Camilo Castelo Branco, José Régio e Teixeira de Pascoaes.
O filme apresenta como epígrafe uma citação de Antero de Quental: “Ali, o lírio dos celestes vales / tendo seu fim, terão o seu começo / para não mais findar, nossos amores”. Assim, desde o início do filme estabelece-se um clima romântico, associado à região do Douro.
Oliveira também evoca temas recorrentes no universo do escritor Camilo Castelo Branco, com quem o realizador partilhou muitas das suas obsessões. Em particular, as paixões extremas da existência e o fascínio pela misteriosa relação entre amor, beleza e morte.

Oliveira e Camilo partilhavam uma ideia da paixão romântica como condição que nunca é levada ao fim, onde a morte joga o papel de cumprimento definitivo daquela promessa impossível de se realizar em vida.
Não é por acaso que, em casa de Isaac, podemos ler alguns títulos da sua biblioteca, que nos guiam para as fontes literárias que o roteirista e realizador português teve em conta. É-nos apresentada a capa da biografia de Camilo Castelo Branco – “Camilo, no drama da sua vida” (1959), de Alberto de Sousa Costa. Também, “As encruzilhadas de Deus” (1966) de José Régio, -um livro de poemas parcialmente recitado diante das câmeras por Isaac no início do filme- e “São Paulo” (1934) de Teixeira de Pascoaes.
O próprio rio Douro funciona como metáfora do fluxo da vida na sua passagem para a morte, representada pela foz do rio numa única grande bacia de água, o oceano.
As cenas importantes do voo noturno sobre a região do Peso da Régua, especialmente aquele longo travelling de Angélica e Isaac levitando sobre o rio Douro, fazem-nos lembrar às pinturas de Marc Chagall, onde um casal sobrevoa a cidade natal do pintor na Bielorrússia. Um exemplo disso é a pintura a óleo “Sobre a cidade” de 1918 (Moscou, National Trejakov Gallery).
Na pintura, na fotografia e no cinema, a suspensão no ar significa transcendência e magia. As figuras voadoras antecipam o motivo da viagem, o sacrifício do exílio e a melancolia pela terra natal e pela família. Significam também a fantástica deambulação entre mundos, entre a ficção e a realidade e a transcendência do humano.
As pinturas de suspensão de figuras de Chagall, assim como a sequência central do filme de Manoel de Oliveira, ilustram o conceito de enamoramento, que também remete à suspensão do tempo, fuga no espaço e renascimento, implicando uma visão diferente do mundo terreno.
A ascensão das figuras é sentida pelo espectador como uma libertação dos limites humanos e como uma viagem rumo ao fim dos ciclos temporais terrenos, algo que só a arte pode dar ao mundo dos homens. Claro, também faz referência a uma viagem extracorpórea para o além, tema recorrente no cinema, principalmente quando um ou mais personagens morrem no início da narrativa.

Através de seus efeitos especiais, "O Estranho Caso..." reproduz os truques dos primeiros anos da sétima arte, como os utilizados por Georges Méliès ao longo de sua filmografia. O tema da ligação entre o amor e a morte, e mesmo entre um ser vivo e um fantasma, também nos remete a filmes mudos pertencentes à corrente do expressionismo alemão, como "Fantasma" (1922) de F.W.Murnau e "O Gabinete do Doutor Caligari" (1919) de Robert Wiene.
Por seu lado, as fotografias de Isaac de escavadores de vinhas lembram-nos as pinturas de Jean-François Millet como "Les Glaneuses" (1857), pertencente ao Musée d'Orsay em Paris, e alguns quadros de Vincent Van Gogh, como "Mulher camponesa com rastilho" (1889), pertencente a uma coleção particular, e "Dois Camponeses Cavando" (1889) pintura a óleo atualmente em exibição no Museu Stedelijk em Amsterdã.
Nesse sentido vale ressaltar que a ferramenta utilizada pelos cavadores, a foice, era um atributo do antigo deus Cronos (Saturno), reverenciado no início entre as divindades da fertilidade da terra, e posteriormente foi tornando-se em deus dos ciclos temporais, sendo a foice que ele carrega na mão, uma indicação dos cortes feitos por ele nos períodos da vida do homem, concluindo com a vida e levando ao ser humano para a morte. Por isso, a sequência de fotos dos garimpeiros trabalhando a terra provavelmente simbolize a passagem do tempo do homem na terra e a morte seguida de um renascimento para uma vida transcendente, contida nas três fotos de Angélica.

Bibliografia:

BAZIN, André. ¿Qué es el cine? Edições Rialp, Madrid, 2008.
BENJAMIN, Walter. Pequena história da fotografia. Magia e técnica, arte e política. Ensaios sobre literatura e história cultural. Trabalhos selecionados. Volume 1. Editora Brasileira, São Paulo, 1987
NICHOLS, Sallie. Jung e o Tarô. Uma jornada arquetípica. Cultrix, São Paulo, 2007
BENIS, Rita. O Estranho Caso de Angélica: afinidade entre Fantástico e Documentário. Aniki Revista Portuguesa da Imagem em Movimiento. Volume 4, nº1, 2017. 
DOS SANTOS SILVA DELGADO, Ana Maria. O estranho caso de Angélica, de Manoel de Oliveira: um viajar fora do tempo. Arquivo Maaravi. Revista Digital de
Estudos Judaicos da UFMG, 2018. Disponível em: https://periodicos.ufmg.br/index.php/maaravi/article/view/14462/pdf
AURA (parapsicologia) na Wikipedia. Disponível em: https://es.wikipedia.org/wiki/Aura_(parapsicolog%C3%ADa
O ESTRANHO Caso de Angélica na Wikipédia. Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/O_Estranho_Caso_de_Ang%C3%A9lica

Filmes e Imagens Consultadas
“O estranho caso de Angélica”, direção e roteiro: Manoel de Oliveira; produção: François d'Artemare, Renata de Almeida, Maria João Mayer, Luis Miñarro; fotografia: Sabine Lancelin; Música: Maria João Pires; Elenco: Ricardo Trêpa, Leonor Silveira, Pilar López de Ayala, Susana Sá, Ana Maria Magalhães. Países: Portugal, Espanha, França e Brasil. Ano 2010.
Filme mudo “Fantasma” dirigido por F.W.Murnau, Alemanha, 1922.
"O Gabinete do Doutor Caligari" filme mudo dirigido por Robert Wiene, Alemanha, 1919.
"Les Glaneuses" (1857) de Jean-François Millet, óleo sobre tela pertencente ao Musée d'Orsay, Paris, França.
"Mulher camponesa com rastilho" (1889) Vincent Van Gogh. Óleo sobre tela pertencente a uma coleção particular.
"Dois camponeses cavando" (1889) Vincent Van Gogh, óleo sobre tela exposto no Museu Stedelijk em Amsterdã.

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